- "O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude.
A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir.
As palavras-princípio não são vocábulos isolados, mas pares de vocábulos.
Uma palavra-princípio é o par EU-TU. A outra é o par EU-ISSO no qual, sem que seja alterada a palavra-princípio, pode-se substituir ISSO por ELE ou ELA.
Deste modo, o EU do homem é também duplo.
A palavra-prinícipio EU-TU só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade.
A palavra-princípio EU-ISSO não pode ser jamais proferida pelo ser em uma totalidade.
Aquele que diz TU não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há também outra coisa; cada ISSO é limitado por outro ISSO. Na medida em que se profere o TU, coisa alguma existe. O TU não se confina a nada. Quem diz TU não possui coisa alguma, não possui nada. Ele permanece em relação."
- "Eu considero uma árvore.
Posso apreendê-la como uma imagem. Coluna rígida sob o impacto da luz, ou o verdor resplandescente repleto de suavidade pelo azul prateado que lhe serve de fundo.
Posso sentí-la como movimento: filamento fluente de vasos unidos a um núcleo palpitante, sucção de raízes, respiração de folhas, permuta incessante de terra e ar, e mesmo o próprio desenvolvimento obscuro.
Eu posso classificá-la numa espécie e observá-la como exemplar de um tipo de estrutura e vida.
Eu posso dominar tão radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela senão a expressão de uma lei, de leis segundo as quais um contínuo conflito de forças é sempre solucionado ou de leis que regem a composição e a decomposição das substâncias.
Eu posso volatilizá-la e eternizá-la, tornando-a número, uma mera relação numérica.
A árvore permanece, em todas estas perspectivas, o meu objeto tem seu espaço e seu tempo, mantém sua natureza e sua composição.Entretanto pode acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um ISSO. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim.Não devo renunciar a nenhum dos modos de minha consideração. De nada devo abstrair-me para vê-la, não há nenhum acontecimento do quel devo me esquecer. Ao contrário, imagem e movimento, espécie e exemplar, lei e número estão indissoluvelmente unidos nessa relação.Tudo o que pertende à árvore, sua forma, seu mecanismo, sua cor e suas substâncias químicas, sua "conversação" com os elementos do mundo e com as estrelas, tudo está incluído numa totalidade. A árvore não é uma impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta "em pessoa" diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela.Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade.Teria então a nossa árvore uma consciência semelhante à nossa? Não posso experienciar isso. Mas quereis novamente decompor o indecomponível só porque a experiência parece ter sido bem sucedido convosco? Não é a alma da árvore ou sua dríade que se apresenta a mim, é ela mesma."
- "O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas quando, estando eu presente diante dele, que já é meu TU, endereço-lhe a palavra-princípio. Ele não é um simples ELE ou ELA limitado por outros ELES ou ELAS, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo. Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciar, descritível, um feixe flácido de qualidade definidas. Ele é TU, sem limites, sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz.
Assim como a melodia não se compõe de sons, nem os versos de vocábulos ou a estátua de linhas, a sua unidade só poderia ser reduzida a uma multiplicidade por um retalhamento ou um dilaceramento, assim também o homem a quem digo TU. Posso extrair a cor de seus cabelos, o matiz de suas palavras ou de sua bondade; devo fazer isso sem cessar, porém ele já não é mais meu TU.(...) O homem a quem digo TU não encontro em algum tempo ou lugar. Eu posso situá-lo, sou, aliás, obrigado a fazê-lo constantemente, mas então, ele não é mais um TU e sim um ELE ou ELA, um ISSO.O TU encontra-se comigo por graça; não é através de uma procura que é encontrado. Mas endereçar-lhe a palavra-princípio é um ato de meu ser, meu ato essencial.O TU encontra-se comigo. Mas sou eu quem entra em relação imediata com ele. Tal é a relação, o ser escolhido e o escolher, ao mesmo tempo ação e paixão. Com efeito, a ação do ser em sua totalidade como suspensão de todas as ações parciais, bem como dos sentimentos de ação, baseados em sua limitação, deve assemelhar-se a uma passividade.
A palavra princípio EU-TU só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A união e a fusão em um ser total não pode ser realizada por mim e nem pode ser efetivada sem mim. O EU se realiza na relação com o TU; é tornando EU que digo TU.Toda a vida atual é encontro.A relação com o TU é imediata. Entre o EU e o TU não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes à totalidade. Entre EU e o TU não há fim algum, nenhum avidez ou antecipação; e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realidade. Todo meio é obstáculo. Somente na medida em que todos os meios são abolidos acontece o encontro.(...) O instante atual e plenamente presente, dá-se somente quando existe presença, encontro, relação. Somente na medida em que o TU se torna presente a presença se instaura.O EU da palavra-princípio EU-ISSO, o EU, portanto, com o qual nenhum TU está face-a-face presente em pessoa, mas que é cercado por uma multiplicidade de conteúdos tem só passado, e de forma alguma presente. Em outras palavras, na medida em que o homem se satisfaz com as coisas que experiencia e utiliza, ele vive no passado e seu instante é privado de presença. Ele só tem diante de si objetos, e estes são fatos do passado. Objeto não é duração, mas estagnação, parada, interrupção, enrigecimento, desvinculação, ausência de relação, ausência de presença. O essencial é vivido na presença, as objetividades no passado.
Relação é reciprocidade. Meu TU atua sobre mim assim como eu atuo sobre ele. O mundo do ISSO é coerente no espaço e no tempo.
O mundo do TU não tem coerência nem no espaço nem no tempo.
Os momentos de encontro com o TU se manifestam como episódios singulares, lírico-dramáticos, sem dúvida, de um encanto sedutor, mas que, no entanto, nos induzem perigosamente a extremos que debilitam a solidez já provada, e deixam atrás deles mais questões que satisfações, abalando nossa segurança. Eles não são só inquietantes, mas indispensáveis.
Por que devemos, após esses momentos, voltar ao "mundo" do ISSO, por que não permanecer no TU? (...) E com toda a seriedade da verdade, ouça: o homem não pode viver sem o ISSO, mas aquele que vive somente com o ISSO não é homem."
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- Trechinhos mágicos de 'Eu e Tu', de Martin Buber.
Desde que li este livro, me apaixonei pela definição das relações humanas de Buber, mas contraditoriamente, venho à procura desse Tu... Então eis que a vida esfregou na minha cara o quanto ele estava certo quanto à inútil procura (mas inevitável), e o Tu me encontrou sem nem ao menos um dos dois procurar...
Nada define melhor certos momentos do que Eu e Tu, figura e literalmente falando, amor...